por Andreia Vicente da Silva

 

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No dia 25 de março de 2020, o Ministério da Saúde publicou um manual que define diretrizes sobre o “Manejo dos Corpos no contexto do novo coronavírus Covid-19”. Este manual contém recomendações técnicas que objetivam evitar a contaminação tanto dos profissionais que lidam diretamente com o cadáver quanto dos familiares durante os sepultamentos e enterros. Mas o que significam estas diretrizes no que diz respeito aos velórios do ponto de vista dos familiares? Quais os impactos do coronavírus nos rituais de morte?

O corpo do morto diagnosticado com coronavírus é tratado tecnicamente como altamente contaminador. Como a contaminação se dá pelo contato pessoa a pessoa e por meio de objetos e superfícies, a possibilidade de contágio através da aproximação e do toque no defunto permanece ativa por 24 horas ou mais. Diante desta perspectiva, o cadáver é considerado poluidor, não apenas no sentido tradicional associado ao apodrecimento que se inicia logo após a cessação da vida. Ele é classificado tecnicamente como potencialmente danoso à saúde por abrigar um agente biológico “classe 3” que é considerado difícil de conter. O procedimento orientado pela Organização Mundial da Saúde prevê uso de vários equipamentos de proteção individual (EPIs) pelos profissionais que lidam diretamente com o infectado evitando exposição a sangue, fluidos corporais, objetos e superfícies contaminadas.

Diante do perigo eminente, o corpo morto precisa ser muito rapidamente isolado e removido para que o vírus que nele habita não seja transferido. Ele é reconhecido apenas por um familiar ou responsável que deve manter a distância mínima de dois metros. Sugere-se inclusive que o reconhecimento seja feito por fotografia, a depender da estrutura, evitando ao máximo a aproximação do cadáver.  Não é recomendado que sejam realizados serviços de Tanatopraxia que envolvem a conservação, asseio e embelezamento do cadáver. Nem mesmo a autópsia é realizada se o caso estiver confirmado. Todos os orifícios naturais e de drenagem devem ser rigorosamente tamponados, o cadáver envolto em três camadas de capas impermeáveis lacradas e cuja etiqueta descreve “COVID-19, agente biológico classe de risco 3”. No fim de todo processo de manejo, o defunto segue para o cemitério em um caixão lacrado e uma declaração de óbito é entregue a família com a descrição da doença causadora da morte COVID-19 e CID B34.2 (no caso de infecção não especificada) ou U04.9 (no caso de síndrome respiratória aguda grave).

Todos estes procedimentos técnicos orientados por padrões internacionais, impactam diretamente os rituais de morte. Mesmo quando o doente ainda está no hospital, os familiares não podem acompanha-lo e dedicar-lhe carinho e atenção. O isolamento imposto ao enfermo em quarto privativo ou em coorte (em caso de compartilhamento de espaço para vários leitos), impede a aproximação dos parentes e amigos. Interdita ao convalescente gestos de carinho, palavras ou demonstrações religiosas que são características em internamentos cujo estado grave do doente é decretado pela equipe médica. O paciente permanece sozinho em um quarto lacrado. Evitam-se todos os toques possíveis. A solidão dos moribundos do coronavírus é uma realidade irrefutável. Uma frustração enorme é relatada por aqueles que precisaram permitir que seus queridos tivessem uma finitude isolada. Os enlutados narram enorme tristeza quando se recordam que não puderam se aproximar e tocar os seus parentes quando ainda estavam com vida.

Velórios não são recomendados para corpos contaminados com coronavírus. Quando um ente querido diagnosticado ou com suspeita morre – em casos de indisponibilidade dos exames de confirmação-, os familiares não têm a oportunidade de se unir, chorar seu morto, se abraçar, contar suas histórias e elaborar a ruptura de uma vida repleta de relações. Aqueles vínculos que tradicionalmente aglomeram pessoas não podem ser acionados. “Meu pai acabou de morrer. Não haverá velório. Não venham me cumprimentar” – escreveu uma filha triste em um velório no Rio de Janeiro. O corpo não pode estar com eles porque ele agora abriga o agente infeccioso. Os vivos precisam se proteger do corpo do seu ente querido morto e também do contato com os parentes e amigos.

O velório é parte essencial dos rituais funerários justamente porque permite aos vivos reunidos em copresença um espaço de transição e de elaboração da mudança social que a morte impõe. É no velório que se inicia a transformação do vivo em morto através da visualização do cadáver, da observação da face da morte e dos toques no corpo que comprovam que aquele parente e amigo agora é um ancestral. A convivência com a matéria sem vida por algum tempo é uma forma que como humanos desenvolvemos de elaboração da metamorfose daquele com quem se conviveu. É preciso tocar, falar, chorar e rir o morto. O velório é parte da elaboração da perda. “Do hospital direto para o cemitério” – ouvi de uma enfermeira que trabalha no Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP/Unioeste) ao explicar que não existe a possibilidade de velório em Capela fechada ou mesmo tempo para que os preparativos e escolhas de serviços funerários.

Tanto o Manual de Manejo dos Corpos do Ministério da Saúde quanto a Nota Técnica 04-2020 GVIMS-GGTES da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) são categóricos em indicar que a família precisa receber informações sobre o risco de contaminação do seu morto e aconselham que se respeite “a dignidade dos mortos, sua cultura, tradições” em todo o processo funerário. De toda forma, os poucos enlutados que vão ao cemitério – que de acordo com relatos em média é de cinco pessoas -, além de terem que lidar com a dor da perda de um parente, também precisam lidar com a enorme frustração de um velório não realizado. Resta a eles observar o seu parente sendo enterrado de maneira muito rápida, algumas vezes em covas rasas e improvisadas – situação que pretende se tornar cada vez mais recorrente se as previsões sobre o avanço da pandemia se tornarem dados reais em cemitérios já lotados na maior parte das cidades brasileiras. Em grandes capitais como é o caso de São Paulo, os corpos dos mortos já são levados em caixão fechado e são deixados em exposição em espaços abertos nos cemitérios pelo tempo máximo de 10 minutos para que pouquíssimos parentes possam se despedir do seu morto. Não são indicadas aglomerações e a urna funerária permanece lacrada.

Enterros relâmpagos, parentes desolados, luto frustrado. O avanço da pandemia no Brasil comprova a importância das atividades ritualizadas que muitas vezes não são percebidas em contextos de normalidade. A quarentena a que estamos submetidos é somente uma das facetas do avanço de um microorganismo que subverte lógicas e que interrompe as atividades mais tradicionais. Apego a operações rotinizadas, a noções sagradas, a ideia de assepsia e outros elementos que compõem o nosso imaginário ocidental devem ser revistas e reestruturadas num processo de construção de um novo modo de ser que pretende ser imposto por um agente não humano. Este agente não se importa nem considera distinções de classe, gênero, cor ou mesmo religião. O velório em tempos de coronavírus será negado a todos indistintamente.

Andreia Vicente da Silva é antropóloga e professora adjunta em antropologia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)