Há quatro anos, em 7 de julho de 2021, o Haiti foi marcado por mais uma tragédia. O presidente Jovenel Moïse foi assassinado em sua própria casa, diante de sua esposa e filhos, em um ato de violência que chocou a nação e o mundo. Sua morte, embora brutal, não foi apenas uma manifestação da violência que assola o Haiti, mas uma resposta implacável à tentativa dele de mudar o destino de seu povo. Moïse, em seus últimos anos, ousou lutar contra as grandes potências e buscou diversificar as alianças do Haiti, algo que, para alguns, resultou em sua queda. Sua morte trágica é um reflexo de um sistema que se opõe a qualquer tentativa genuína de emancipação do povo haitiano.
Mas a morte de Moïse não é um caso isolado. Ao longo da história do Haiti, figuras que se levantaram pela centralidade do povo no poder e buscaram um Haiti mais justo também perderam suas vidas. O assassinato de Jean-Jacques Dessalines, o pai da nossa independência, em 17 de outubro de 1806, é o mais grave de todos. Foi grave, pois Dessalines não foi apenas o líder que proclamou a independência, mas também o pai dos mártires haitianos, o símbolo de uma nação que se levantou contra o opressor. Sua morte foi um golpe direto no coração da nossa luta pela liberdade.
Foi grave, pois Dessalines tombou como um herói, mas foi traído. Foi ele quem guiou o povo haitiano até a vitória, mas, no momento mais crucial, viu sua liderança ser destruída por aqueles que, em busca de poder, o abandonaram. Sua morte não foi apenas o fim de um herói; foi a perda de um símbolo, uma demonstração de que o Haiti, sempre vulnerável, continua sendo vítima das forças internas e externas que preferem a divisão à unidade. Foi um golpe, pois o líder que mais simbolizava nossa independência, nossa luta, caiu não somente pelas forças externas, mas pela traição.
E assim, a tragédia continua. Em 15 de janeiro de 1870, o presidente Sylvain Salnave foi assassinado. Ele também acreditava que a verdadeira independência do Haiti só seria possível com a inclusão dos marginalizados no desenvolvimento da nação. A mesma ideia que uniu Dessalines e tantos outros em nossa história. A luta de Salnave também foi pela centralidade do povo no poder, mas ele também pagou com sua vida pela mesma resistência implacável do sistema que não tolera mudanças.
Em 8 de agosto de 1912, o presidente Cincinnatus Leconte também foi assassinado. Leconte, como Salnave, se opôs a um sistema que se recusava a deixar o povo haitiano ser verdadeiramente livre. Ele procurou, em sua luta, realizar reformas que desafiassem a ordem estabelecida, mas, como tantos antes dele, pagou o preço por seu compromisso com a população. O mesmo aconteceu em 28 de julho de 1915, quando o presidente Vilbrun Guillaume Sam, que se refugiava na Embaixada da França, acreditava que a proteção externa poderia ser sua salvação. No entanto, mesmo a proteção internacional não o impediu de cair vítima de um sistema que não tolera desafios à sua ordem.
Todos esses líderes tinham uma visão comum: colocar o povo haitiano no centro do poder e do desenvolvimento. Eles não morreram por suas falhas, mas por suas crenças. Por sua ousadia de desafiar um sistema que não aceita mudanças e que prefere a manutenção da opressão. Morrem sem defesa, sem embaixadas que os protejam, sem uma voz que fale por eles. São silenciados pela violência, pelo medo, pela opressão que sempre pairou sobre o país.
Ao refletir sobre as mortes de nossos líderes, percebo que o mais doloroso não são apenas os assassinatos em si, mas o silêncio que os rodeia. Todos os dias, haitianos morrem — não apenas os que ocupam cargos de poder, mas a população inteira. Morrem nas fábricas pelo mundo, onde suas mãos são exploradas para enriquecer outros. O Haiti, outrora um grande exportador de bens, agora exporta cérebros a preço de banana e força física de quem nunca desejou deixar sua pátria, sendo forçado a procurar uma vida melhor em terras estrangeiras, longe de sua terra, sua cultura, suas raízes.
Morrem nas travessias forçadas entre dois mundos, tentando escapar de um país que lhes roubou todas as oportunidades. Morrem no mar, vítimas do desespero que os empurra para arriscar tudo em busca de um futuro melhor, mas que frequentemente lhes é negado. E muitos deles morrem de uma maneira ainda mais cruel, anônimos, sem nome, sepultados em valas comuns, sem que ninguém reclame seus corpos, sem que ninguém se lembre de suas vidas. Eles são os esquecidos, os que não fazem parte de um sistema que os vê como descartáveis.
Morrem pela fome, que não é apenas a falta de comida, mas a falta de esperança, a falta de dignidade. A fome que consome não só o corpo, mas a alma de um povo que foi deixado à margem, sem voz, sem poder, sem direito à prosperidade. Morrem pela revolta, uma revolta silenciosa, diária, contra um sistema que os considera invisíveis. A revolta do povo haitiano não é apenas contra a pobreza material, mas contra a pobreza de dignidade, contra a dor que os é imposta a cada novo dia.
Morrem sem defesa, sem embaixadas que possam ampará-los, sem organizações que se levantem em sua defesa. São vítimas de um sistema internacional que, ao invés de estender a mão, os empurra para o abismo da desesperança. O Haiti é um país onde as vidas dos mais pobres e vulneráveis não têm valor. Seus corpos se tornam estatísticas sem rosto, seus gritos de dor se perdem no vento, enquanto o mundo vira as costas para os que sofrem. Não importa quantos morram, o sistema continua a funcionar, mantendo o Haiti em um estado de miséria e desamparo.
E é isso que é realmente devastador: a corrupção e o abandono são muito mais destrutivos do que qualquer terremoto. O impacto da corrupção é profundo, sutil e constante, como um tsunami invisível que varre a pátria, dilacerando o que restou da moral e da ética. O Haiti, uma ilha de beleza ameaçada, viu sua alma ser consumida pelo sistema que virou as costas para seus filhos. A moral e a ética vomitaram em toda a margem da ilha, deixando um rastro de destruição que ninguém pode ver, mas todos podem sentir. O abandono é o verdadeiro terremoto, aquele que destrói as bases de uma nação, que esmaga as esperanças de um povo que, ano após ano, vê seus sonhos sendo pisoteados.
Cada dia no Haiti é uma luta pela sobrevivência, e o preço dessa sobrevivência é alto. Quando o povo haitiano tenta levantar a cabeça, tentar fazer sua voz ser ouvida, encontra à frente um sistema que não os deixa caminhar. A cada morte, seja nas ruas, nas travessias, nas fábricas ou nos campos de batalha da política, a nação perde não apenas uma vida, mas um pedaço de sua alma. Não se trata apenas das mortes físicas; trata-se de sonhos apagados, de vidas que nunca têm a chance de florescer.
A morte de Moïse, assim como as de tantos outros antes dele, é um lembrete de que o Haiti continua a ser um país em guerra — não apenas contra inimigos externos, mas contra as forças internas que perpetuam seu sofrimento. A luta pela dignidade e pela liberdade nunca foi fácil, mas é uma luta que continua. O sangue derramado por esses líderes e pelo povo haitiano não pode ser esquecido. A história do Haiti é feita de resistência, mas também de sacrifício. E enquanto houver haitianos dispostos a lutar, a luta pela soberania e pela liberdade continuará, sem fim, até que o Haiti se liberte das amarras que o prendem.
O Haiti, apesar de tantas perdas, continua a resistir. E, enquanto houver aqueles dispostos a lutar por um futuro diferente, essa luta jamais cessará. Somos um povo condenado à morte, mesmo com a revolta dos inocentes no olhar. Mas Dessalines vive em nossos olhos. Ele é nossa bandeira preta e vermelha, e ela ainda vai tremular em um céu azul, tropical e feliz. Enquanto houver vida, enquanto houver resistência, nossa luta pela verdadeira soberania e pela liberdade nunca cessará. O Haiti viverá e, um dia, nós vamos, repito, é apenas uma questão de tempo e ele corre a favor da Justiça e da liberdade de uma nação separada pela dor e unida pela força.