Imagem do momento em que a Saveiro irregular foi apreendida pela Guarda Municipal na noite de quarta-feira. O condutor foi preso e encaminhado para a delegacia. Foto: GMT

Por Fernando Braga*

Deveria ser inacreditável, mas infelizmente não é. Sabemos que isso acontece todos os dias. Absurdo? Sim. Inaceitável? Também. Independente do adjetivo encontrado para classificar a ação do Judiciário, o mais importante é entende-la. Acompanhei em tempo real a prisão do delinquente que, alcoolizado, fugiu de uma equipe da Guarda Municipal em alta velocidade, colocando a vida de várias pessoas em risco, chegando, inclusive, a bater seu carro em uma moto conduzida por uma gestante. Sua prisão, aliás, só ocorreu depois que ele bateu o automóvel que dirigia em um poste.

A ocorrência se deu na noite de quarta-feira (29), mas a entrada do criminoso na cadeia, de onde não deveria sair tão cedo, aconteceu na madrugada desta quinta, depois de todos trâmites necessários. Conversando com os operadores da Segurança Pública envolvidos na ocorrência, fiquei a par dos fatos e ainda naquela madrugada publiquei uma matéria neste jornal noticiando os acontecimentos por meio de uma Reportagem. Hoje escrevo em primeira pessoa, na forma de Artigo, pois assim fico livre das formalidades da escrita jornalística e posso opinar sobre a ação do Judiciário, que pela conduta legítima de um juiz da Comarca de Toledo tirou da cadeia um bandido perigoso antes mesmo dele ser ouvido em audiência de custódia.

O delinquente de 22 anos que fugiu da viatura pela contramão e atravessou a preferencial, vindo a colidir com o ciclomotor da mulher que está grávida de sete meses, deveria ter sido autuado e qualificado por tentativa de homicídio. Isso tem respaldo na legislação vigente, que prevê a embriaguez ao volante como qualificadora quando o condutor envolve-se em acidente. Ao dirigir alcoolizado, aquele rapaz desajustado, que apesar da pouca idade já teve outros problemas com a Lei, assumiu o risco de cometer um acidente, ferir e até matar pessoas. No caso da mulher atingida por ele, felizmente só teve escoriações. No entanto, ela poderia ter perdido sua vida e a do bebê. Isso, por si só, não basta para que o bandido permaneça na prisão?

Além do crime maior que o rapaz cometeu, que foi atentar contra a vida das outras pessoas, ele demonstrou que menospreza a lei de modo geral. Se considerarmos os motivos de sua prisão encontramos: dirigir veículo rebaixado, dirigir alcoolizado, dirigir na contramão, dirigir sem possuir CNH, atravessar a preferencial e desobedecer a ordem de parada dada pelos guardas municipais. Essa é uma breve descrição do conjunto de infrações que o fez ser enquadrado em direção perigosa. Mas ele também cometeu outros atos repreensíveis, como ameaçar os agentes da Guarda Municipal que o escoltavam na UPA durante a realização do exame de corpo de delito, necessário para que desse entrada na carceragem. Essa compilação de transgressões não é o suficiente para manter um criminoso atrás das grades?

Outro absurdo, além da incompreensível soltura do criminoso, foi sua curta estada nas dependências da Cadeia Pública de Toledo, que não durou nem 24 horas. Como estava bêbado ao ser preso, na prática, o juiz fez de sua passagem pelo Deppen (Departamento de Polícia Penal) uma espécie de retiro. Separado em um ambiente mais ‘amistoso’, o rapaz ficou detido esperando passar o porre e sarar da ressaca para voltar pra casa. Digo amistoso porque ele não se juntou à massa carcerária. Delinquentes que supostamente são de ‘menor potencial ofensivo’ ficam separados dos outros presos que habitam o estabelecimento prisional. Existe uma cela reservada exclusivamente para desajustados que passam pelo ‘xilindró’ por consequência da Lei Maria da Penha, por porte ilegal de arma de fogo e por embriaguez ao volante. Ao invés de ser enquadrado por homicídio tentado, depois de assumir o risco ao dirigir alcoolizado e bater em uma motociclista, o indivíduo ficou preso apenas por embriaguez ao volante, lesão corporal e direção perigosa. No espaço reservado em que ficou, geralmente a estada é breve, mas para o bandido preso pela Guarda Municipal, foi bem ligeira.

Vejamos como se deu a cronologia da efêmera detenção. Detido por volta das 22h40 de quarta-feira, o desequilibrado logo foi encaminhado à 20ª SDP para ser apresentado à Autoridade Policial, que deveria ouvi-lo, qualifica-lo e encaminha-lo para a Cadeia Pública. Como ele sofreu um acidente, batendo no poste que cessou a fuga, precisou ser encaminhado para a UPA para a realização do exame do corpo de delito. Na volta à delegacia, prestou depoimento e somente depois da Polícia Civil fazer a ‘nota de culpa’ é que ele foi levado para a cadeia. No cárcere, já sob a custódia da Polícia Penal, o desordeiro pousou para aquela clássica foto que vemos nos filmes quando os presos recebem um número de matrícula e são fichados. Essa foto foi tirada à 01 hora da madrugada de quinta-feira. Em seguida, o criminoso foi levado para a cela.

Até aqui, tudo bem. Todos os trâmites legais foram cumpridos. Guarda Municipal, Polícia Civil e Polícia Penal fizeram seus trabalhos e estávamos um pouco mais seguros, pois uma pessoa que não sabe conviver em sociedade foi devidamente tirada de circulação. O problema é que no Brasil as leis são frágeis, o Código Penal é arcaico, a classe política reluta em rever a legislação e as autoridades parecem ter dificuldades para criar e efetivar políticas penais consistentes, capazes não só de garantir o cumprimento da pena, como também de promover a ressocialização dos presos. Ao invés disso, criam-se dispositivos paliativos, como a audiência de custódia, a qual alega-se ser necessária para proteção dos direitos do indivíduo, mas que na prática vale-se da superlotação dos presídios, dentre outros argumentos, para não mandar mais presos para a cadeia.

Se fossem cumpridos os ritos pelos quais a maioria dos presos passa, o bandido detido na noite de quarta deveria ser apresentado a um juiz para audiência de custódia nesta sexta, dentro do prazo máximo determinado, que é de 48 horas após a prisão, e seu destino poderia ser diferente. A audiência de custódia dele estava marcada para ser realizada hoje a tarde, entre às 13h e às 15h, mas ele deixou a cadeia na noite de ontem. Depois de ser colocado em uma cela à 01 hora da madrugada, ele foi liberado às 21h por um alvará de soltura assinado pelo juiz de plantão, que lhe concedeu liberdade provisória. Sua breve passagem pela cadeia durou exatamente 20 horas.

Além de sair antes da audiência de custódia, ele ainda foi agraciado com a isenção de fiança. Isso mesmo, ele não precisou nem pagar fiança para deixar a prisão. Veja só como este é um rapaz de sorte! Quando uma pessoa é presa por embriaguez ao volante, cabe a Autoridade Policial arbitrar a fiança. Nessa circunstância, eu já vi o delegado liberar pessoas detidas por dirigir sob efeito de álcool mediante pagamento de valores que variaram de R$ 1.300 a R$ 2.000. No entanto, por ter batido o carro na moto da gestante, o criminoso em questão teria que aguardar a decisão de um juiz, pois nesse caso, não cabe ao delegado a decisão sobre a fixação de uma fiança.

De maneira que foge à razoabilidade, o criminoso foi solto em menos de 24 horas depois de ser preso, sem sequer passar pela audiência de custódia e sem precisar pagar fiança. Se os operadores do Direito, incluindo os juízes, fossem mais zelosos, a Lei de Execuções Penais seria cumprida e ele ficaria recolhido como preso provisório, aguardando julgamento (ele ainda vai ser julgado, mas até esse dia chegar, ficará em liberdade).

Depois de ter acompanhado a prisão e a soltura do rapaz inconsequente de 22 anos, tenho que lamentar e reconhecer que não se trata de um caso isolado. Isso acontece todos os dias, em todas as partes do País. A culpa não é do juiz de plantão, pois ele tem respaldo na Lei e legitimidade para soltar os delinquentes. O Judiciário conferiu a ele esse poder. Para mudar isso, é necessário mudar a atuação do Judiciário, algo que só vai acontecer depois que novas e robustas leis forem criadas.

A mudança se faz urgente, mas está tão distante… Enquanto isso, os bandidos seguem impunes, como se tivessem mais direitos que o restante da população.

*Fernando Braga é ex-agente penitenciário, jornalista e editor da Gazeta de Toledo