Encontrada abandonada no país africano de Guiné-Bissau, uma menina com deficiência visual, de oito anos, foi trazida por missionários ao Brasil em 2015. Há dois anos, uma família brasileira deu início ao movimento para adotá-la. Atípico em função da criança ser estrangeira, o processo foi mais demorado, sendo finalizado somente há poucos dias, após atuação do Ministério Público do Paraná, que ingressou no Superior Tribunal de Justiça com ação de homologação de sentença (veja mais detalhes do processo abaixo).

Embora a menina africana, hoje com 12 anos, tenha enfim encontrado um novo lar, no Brasil, muitas crianças e adolescentes ainda vivem em casas de acolhimento à espera da mesma sorte. Segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção, existem no país 9.544 crianças e adolescentes aguardando famílias substitutas, sendo 982 somente no Paraná (dados coletados em 2 de maio). Em Curitiba, de acordo com informações obtidas pelas Promotorias de Justiça que atuam na área (coletadas em 9 de maio), há 612 meninas e meninos acolhidos em 28 casas (sete oficiais e 21 parceiras).

Das quase 10 mil crianças e adolescentes cadastradas no Brasil, 67,62% têm mais de seis anos de idade (6.454), 16,63% (1.587) são negras e 20,44% (1.952) têm algum problema de saúde ou deficiência. Essas três características – presentes na menina africana – reduzem sensivelmente as chances de adoção, em função das exigências dos candidatos a pais. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que, entre os 46.007 pretendentes à adoção, 84,43% não aceitam adotar crianças com mais de seis anos de idade, 43,78% não querem adotar crianças negras e 61,23% não concordam em adotar crianças com problemas de saúde ou alguma deficiência.

Adoção tardia – Há anos, a situação no Brasil se repete: há muito mais pessoas interessadas em adotar do que crianças disponíveis para adoção (a média é de cerca de cinco pretendentes para cada criança). Mesmo assim, boa parte das crianças e adolescentes que se encontram hoje em instituições de acolhimento devem se tornar adultos sem que tenham sido adotados, porque não preenchem os requisitos exigidos por quem deseja adotar, principalmente em relação à idade. “Geralmente neste mês, quando se comemora o Dia Nacional de Adoção (25 de maio), essa discussão vem à tona. Incentivar a chamada adoção tardia, ou seja, de pessoas com mais de 12 anos, é um grande desafio, que implica um trabalho constante de conscientização dos pretendentes a pais. Ser pai de uma criança maior ou mesmo de um adolescente é uma experiência que pode surpreender de forma muito positiva os pais”, comenta a promotora de Justiça Luciana Linero, que atua no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Criança e do Adolescente e da Educação. Em Curitiba, quase metade das crianças e adolescentes acolhidos têm mais de 12 anos: dos 612, 296 (48,36%) já completaram essa idade (dados e 9 de maio).

Outros fatores – A promotora Luciana Linero reforça que, além da idade, outros fatores que limitam as chances de adoção de uma criança ou adolescente são cor da pele, problemas de saúde e a existência de irmãos (irmãos são preferencialmente adotados juntos para manutenção dos vínculos fraternos). Analisando o perfil dos pretendentes incluídos no Cadastro Nacional de Adoção, observa-se que 92,44% aceitam crianças brancas. A aceitação para crianças negras cai para 56,22%. Com relação aos problemas de saúde ou deficiência, a taxa de pretendentes que concordam em adotar crianças nestas condições é de 38,77%. Grupos de irmãos não são a opção de 62,03% dos candidatos a pais, embora 55,29% das crianças que estão em instituições tenham irmãos.

Orçamento e apadrinhamento – Há iniciativas que podem melhorar a qualidade de vida, dentro das casas de acolhimento, de crianças mais velhas e de adolescentes com menores chances de serem adotados e que podem permanecer nas instituições até a maioridade, como os projetos de apadrinhamento. “Essas iniciativas são muito importantes, pois há grande prejuízo aos adolescentes que permanecem por anos em instituições, razão pela qual devemos, com urgência, jogar luz sobre o tema e exigir providências por parte do Poder Público (inclusive com destinação orçamentária prioritária) e comprometimento de toda a sociedade”, destaca a promotora de Justiça Mariana Bazzo, da 2ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de Curitiba.

Um desses projetos é o “Cuida de mim”, desenvolvido pela Rede Paranaense de Comunicação, pelas Varas da Infância e da Juventude de Curitiba (1ª e 2ª) e pelas Promotorias de Justiça com atuação na área em Curitiba e Araucária. A iniciativa destina-se a encontrar padrinhos para adolescentes (nos termos do artigo 19-B do Estatuto da Criança e do Adolescente), a partir de divulgação de imagens de jovens acolhidos e orientações sobre os trabalhos das ONGs Dindo e Recriar. Neste mês de maio, o projeto tem sido apresentado em uma série de reportagens diárias da RPC.

Adoção de menina africana exigiu atuação diferenciada do MPPR

O processo de adoção da menina que veio da África foi mais complicado, por envolver pessoa de outra nacionalidade, havendo a necessidade de que a decisão de destituição do pátrio poder, dada em outro país, fosse admitida pela Justiça Brasileira, em pedido que foi feito ao Superior Tribunal de Justiça. O Ministério Público do Paraná, que tem prerrogativa legal para também atuar perante este Tribunal em recursos e ações desta espécie, deu início ao pedido, por meio de sua Coordenadoria de Recursos Cíveis, obtendo êxito em tempo relativamente curto.

Os pais adotivos, que receberam a sentença definitiva da adoção somente no final de abril, conheceram a menina na casa de acolhimento em que ela estava e manifestaram interesse em adotá-la. Em geral, esse não é o procedimento padrão, mas houve o entendimento de que a menina e a família já tinham um vínculo afetivo estabelecido e que a adoção atendia os interesses da adolescente.

O caso foi inicialmente atendido na 2ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de Curitiba, que deu as orientações iniciais aos pais pretendentes à adoção. Em seguida, foi repassado à Coordenadoria de Recursos Cíveis do MPPR, devido à necessidade de atuação no Superior Tribunal de Justiça, perante o qual foi ajuizado o pedido de homologação de sentença estrangeira.

Uma vez obtido do STJ o reconhecimento de que a sentença proferida em novembro de 2015 (ano em que a menina foi trazida ao Brasil), pelo Tribunal Regional de Bissau (capital da Guiné-Bissau), correspondia a um procedimento legítimo de destituição do pátrio poder, a adoção foi viabilizada. “Essa decisão foi dada no final do ano passado pelo STJ, sendo que, após receber a decisão transitada em julgado do STJ, a Coordenadoria de Recursos Cíveis, no final do mês de fevereiro, encaminhou a documentação para a Promotoria de Justiça que deflagrou os procedimentos para a adoção”, explicou a procuradora Samia Saad Gallotti Bonavides, responsável pelo recurso junto ao STJ. Assim, no dia 30 de abril, após dois anos com guarda provisória, os pretendentes à adoção obtiveram sentença definitiva da adoção, em decisão favorável da Justiça em Curitiba.